Fernando Mendes Pessoa
Prof. Dr. de Filosofia – Ufes
Esta apresentação do livro de poesia Senhor branco ou o
indesejado das gentes, de Paulo Roberto Sodré, começa com a
leitura de um de seus versos: “Nenhum texto declara norte ou figo
na constelação que o verso investiga.” Ele adverte que não há
como um texto esclarecer as referências e frutos de um verso
poético; a poesia é uma constelação que não cabe no alinhavo de
um texto. Isso porque, de modo geral, o texto pretende, com a
certeza de sua análise, investigar o assunto na luz meridiana, sem
sombras, da razão. Entretanto se, oposto à claridade da certeza, o
que é próprio da poesia é o mistério de sua imensidão, como é
possível ler versos com tanta luz?
Ao contrário da pretensão à certeza, um texto que se propõe
a interpretar poesia deve, tal como o verso, investigar a
constelação que se recusa ser observada no meio-dia de um
esclarecimento e, entregue a vastidão dessa investigação,
compreender o que, por sua própria natureza, se oculta. Com tal
advertência, abnegamos de, nesta apresentação, esclarecer este
livro de poesia. Ao contrário de declarar o norte ou o figo dessa
constelação poética, este nosso texto de abertura propõe indícios,
apenas acena para o que, por se ocultar, deve ser entrevisto
desnorteadamente.
Advertência feita, passamos então ao título do livro: Senhor
branco ou o indesejado das gentes. Imediatamente, salta aos olhos
uma ressonância poética com Manuel Bandeira e João Cabral de
Melo Neto. Uma filiação, cepa ou estirpe poética?! Sim. Pois, além
da consoante concepção da morte como a indesejada das gentes,
encontramos neste livro tanto o trabalho formal de um João
Cabral, quanto a revelação informal de um Manuel Bandeira;
ressoam em seus versos tanto a lira desse como a anti-lira daquele.
Como afirma a promessa do primeiro poema, o livro propõe,
“nestes páramos de sílabas”, dar à morte um rosto; e tal tarefa é
confirmada como cumprida no último poema: “Nestas paragens de
poemas, dei-te um rosto de homem”. Antes de considerar porque
aqui a morte tem um rosto de homem, podemos observar que, em
sua estrutura formal, o livro começa com o poema Nestes páramos
e termina com o Nestas paragens, afirmando e confirmando ser o
seu propósito dar um rosto à morte. Páramo é topo, o planalto
deserto da abóbada celeste, o ponto mais alto, mais afastado,
enorme. Para Paulo Sodré, páramos são as sílabas de suas poesias.
Paragens são os lugares de repouso das grandes navegações, aonde
o mar encontra praia, porto, parada para descansar. Aqui, as
paragens são poemas escritos com páramos, poesias que dão rosto
à morte.
Distinto tanto da morte que é mulher ou anjo em Manuel
Bandeira, quanto da morte que é lâmina ou cama em João Cabral,
aqui a morte tem um rosto de homem, ela é o senhor branco, belo
e castanho, com cabelos cacheados: o morte! Por que? – simples:
“pois se uma mulher deu-me o que se fez vida, é de sorte que um
homem ma recolha”. Com o propósito de dar rosto ao senhor
branco, o livro de Paulo Sodré descreve a morte como um percurso
de sombra, que começa com o frescor, passa como um arrepio e
acaba com o corte – momentos que constituem respectivamente as
três partes do livro:
No frescor da sombra, tudo são questões, dúvidas,
pressentimentos e especulações. O fascínio e o medo unidos
edificam simultaneamente o totem e o tabu. Morte!? Termo que
determina, baile de foices; um átimo que, retirando o nome,
separa a voz do silêncio; recesso de silêncio, senhorio de ausência,
domínio de esquecimento. A primeira parte do livro, intitulada
Percurso de sombra e frescor, apresenta o senhor branco.
Com o frio de seu frescor, a sombra arrepia: após todas as
dúvidas, a constatação da morte. Não importa como vem, seja por
atropelamento, tiro, veneno ou derrame, a morte é sempre certa,
está na espreita, por trás da curva, à espera do chão. E quando ela
se aproxima, tudo desfalece em reticências. A morte revela a
incompletude do que somos, o nosso inacabamento e imperfeição.
Nada, ninguém, nenhum; quieto, vazio, vencido – a morte é o não
que perfaz a finitude da vida. A segunda parte do livro, intitulada
Percurso de sombra e arrepio, faz a constatação de ser o senhor
branco uma partida que abandona tudo como estava.
Por fim, o corte. A confirmação de que a morte irrompe,
rompe e interrompe; de que ela é a ruptura da vida que, deixando
tudo na mesma inevitável reticência, revela que somos, no fim,
perda. O senhor branco mostra a ausência, o itinerário de nossas
vidas vazado, esvaziado em não. Após o frescor e o arrepio da
sombra vem o hálito do esquecimento, o corte do aperto de mão
com a morte, seu paternal abraço. Tudo se finda nessa concessão
inevitável do nada, poeira ou pólvora para fátuo fogo. Neste
percurso de sombra, que atravessa o frescor, o arrepio e o corte, a
morte ganha um rosto, a face do senhor branco.
Ao fim de cada um desses três momentos, um contraponto;
cada parte do livro é, portanto, composta de um ponto e um
contraponto. Criado na composição polifônica da música medieval,
o contraponto consiste em estabelecer um paralelo entre duas
linhas melódicas simultâneas que se encontram nos contrastes e
dissonâncias. Na poesia de Paulo Sodré, como contraponto à
morte, o amor, ou melhor, o erotismo:
Como contraponto ao Percurso de sombra e frescor, Da
abreviatura do não também questiona a finitude, sendo que o
primeiro, a da morte e, o segundo, a do amor. Amor e morte se
confundem num erotismo cheio de dúvidas, ciladas e vacilos.
Solidão, relação, casamento, concessão, união, separação. O
discernimento do sim e do não se obscurece na sombra do talvez,
ficando tudo confuso. Bastava dizer que sim, mas disse não antes
do tempo. Na primeira parte do livro, como contraponto ao
questionamento da morte, encontramos a dúvida do amor.
Na segunda parte, uma caligrafia dos cabelos contrapõe-se
ao arrepio da morte. Em Sob o grifo dos cabelos, o que era arrepio
se esvoaça numa orquestra de alaúdes, um madrigal de
Monteverdi. Encontramos cachos de cabelos castanhos espalhados
pelos versos, tristeza e doce melancolia. Uma escrita emaranhada
e evasiva, cheia de silêncios e saudades.
Na terceira parte, ao Percurso de sombra e corte contrapõe-
se da cor do caqui e do azul, numa explícita referência ao disco
Araçá azul de Caetano Velozo. Embora a frase central, tanto do
disco quanto desse terceiro contraponto, seja “com fé em Deus, eu
não vou morrer tão cedo”, há aqui um titubear entre a esperança
e a desilusão, que podemos caracterizar como uma espera do
desespero. Como contraponto à revelação do corte da morte, da
inevitável reticência de nossa vida, o verso marca, desata e vara o
desejo, o sonho-segredo do araçá azul, o nome mais belo do medo.
Com fé em Deus não morrerei antes de sentir os dedos de suas
mãos sem anéis, o cheiro dos cachos morenos de seus cabelos.
Mas, ao fim destas canções, como contraposto ao ineludível senhor
branco, o indesejado das gentes, a confissão do cansaço em
aguardar os passos daquele que nenhuma probabilidade, faça sol,
faça noite, faça nuvem, deixara chegar.