segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Texto: O espírito de porco

Um açougueiro estava em sua loja e ficou surpreso quando um cachorro entrou. Ele espantou o cachorro, mas logo o cãozinho voltou.
Novamente, ele tentou espantá-lo. Foi quando viu que o animal trazia um bilhete na boca.
Ele pegou o bilhete e leu:
“Pode mandar 12 salsichas e uma perna de carneiro, por favor? Assinado….” Ele olhou e viu que dentro da boca do cachorro havia uma nota de 50 Reais. Então, ele pegou o dinheiro, separou as salsichas e a perna de carneiro, colocou numa embalagem plástica, junto com o troco, e pôs na boca do cachorro.
O açougueiro ficou impressionado e como já era mesmo hora de fechar o açougue, ele decidiu seguir o animal. O cachorro desceu a rua, quando chegou ao cruzamento deixou a bolsa no chão, pulou e apertou o botão para fechar o sinal. Esperou pacientemente com o saco na boca até que o sinal fechasse e ele pudesse atravessar a rua.
O açougueiro e o cão foram caminhando pela rua, até que o cão parou em uma casa e pôs as compras na calçada. Então, voltou um pouco, correu e se atirou contra a porta. Tornou a fazer isso. Ninguém respondeu na casa. Então, o cachorro circundou a casa, pulou um muro baixo foi até a janela e começou a bater com a cabeça no vidro várias vezes.
Depois disso, caminhou de volta para a porta, foi quando alguém abriu e começou a bater no cachorro. O açougueiro correu até esta pessoa e o impediu, dizendo:
- Por Deus do céu, o que você está fazendo?
O seu cão é um gênio!
A pessoa respondeu:
- Um gênio? Esta já é a segunda vez esta semana que este estúpido ESQUECE a chave!
Moral da História: 
Você pode continuar excedendo às expectativas, mas para os olhos de alguns, você estará sempre abaixo do esperado.
Qualquer um pode suportar as adversidades, mas se quiser testar o caráter de alguém, dê-lhe o poder.
Se algum dia alguém lhe disser que seu trabalho não é o de um profissional, lembre-se: amadores construíram a Arca de Noé e profissionais, o Titanic.
Quem conhece os outros é inteligente.
Quem conhece a si mesmo é iluminado.
Quem vence os outros é forte.
Quem vence a si mesmo é invencível.
O espírito de porco nunca está satisfeito!

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Pronomes demonstrativos

1º) Na posição geográfica use:

- ESTE: para designar o que está próximo da pessoa que fala.
- ESSE: para designar o que está próximo da pessoa com quem se fala.
- AQUELE: para designar o que está distante das duas pessoas, ou seja, a que fala e a com quem se fala.
Ex.:
Esta moto em que eu estou foi comprada ontem.
Essa moto em que você está é linda.
Você viu aquela moto que passou.
2º) Na posição temporal use:
- ESTE: no presente e no futuro (considerando o que ainda será mencionado).
- ESSE: no passado (considerando o que já foi mencionado).
Obs.:
Neste ano, quero paz no meu coração...” (refere-se ao ano presente)
“São estes alguns dos problemas que nos afligem: estradas, ensino, indústria pesada, amparo à agricultura”. (refere-se ao que ainda será mencionado)
“Estradas, ensino, indústria pesada, amparo à agricultura, esses são alguns dos problemas que nos afligem” (refere-se ao que já foi mencionado)
3º) Na posição distributiva use:
ESTE: para o que foi mencionado por último.
AQUELE: para o que foi inicialmente mencionado.
Ex.:
Juliana já contraiu febre amarela e dengueesta (a dengue), quando fez um viagem à floresta Amazônica; aquela (a febre amarela), quando enfrentou uma enchente em 1992.
VOCÊ SABIA?
Na linguagem jurídica, é absolutamente comum encontrarmos a expressão ISTO POSTO. Ocorrem aí dois erros: primeiro, o pronome ISTO refere-se a tudo quanto foi dito anteriormente, logo o correto seria ISSO. Segundo, o sujeito do particípio jamais poderá vir anteposto ao verbo, mas obrigatoriamente posposto. Portanto a construção mais adequada seria POSTO ISTO.
Agora é hora de você treinar o que aprendeu. Vamos lá!
Empregue nos exercícios a seguir o pronome demonstrativo adequado:
1 – Tenha sempre lembrança _______ eu o amo e sempre o amarei. (disto, disso)
2 – Por que você está usando _______ calça rasgada? (esta, essa)
3 – Como são difíceis ________ dias que estamos atravessando! (estes, esses)
4 – O perdão e a vingança se opõem frontalmente: _______ degrada os homens; _______ os eleva. (esse, esta)
5 – Qual o manequim _______ vestido que você está usando? (deste, desse)
6 – Senhor Presidente: em resposta ao ofício nº 5/92 _______ dessa Presidência, peço vênia para esclarecer que _______ Divisão que me cabe dirigir não pode ser responsabilizada por todas _______ irregularidades a que V. Exa. se refere. (desta, dessa, esta, essa, estas, essas)
7 - _______ mês em que estamos está passando rápido. (este, esse)
8 – Você disse que vai viajar em março para o Rio Grande do Sul? ______ mês também é de chuva lá ______ Estado? (este, esse, neste, nesse, naquele)
9 – Será que ninguém ______ casa me entende? (desta, dessa)
10 – Má escovação causa inflamação na gengiva e ______ todos deviam saber. (isto, isso)

GABARITO.
1 – DISTO
2 – ESSA
3 – ESTES
4 – ESTA, AQUELE
5 – DESSE
6 – DESSA, ESTA, ESSAS
7 – ESTE
8 – ESTE, NAQUELE
9 – DESTA
10 – ISSO

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

PAI CONTRA MÃE
A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.
Cândido Neves, -- em família, Candinho,-- é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos.
Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.
Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras.
O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi--para lembrar o primeiro ofício do namorado, -- tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas.
--Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. --Não, defunto não; mas é que...
Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade.
--Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.
--Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.
A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço.
Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego certo.
Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.
--Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.
A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.
--Vocês verão a triste vida, suspirava ela. --Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara. --Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que pouco... --Certa como? --Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?
Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer. --A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau... --Bem sei, mas somos três. --Seremos quatro. --Não é a mesma cousa. -- Que quer então que eu faça, além do que faço? -- Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem vintém. -- Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo.
Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.
Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.
Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis.
Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem.
--É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego.
Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.
A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos.
--Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!
Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio. --Titia não fala por mal, Candinho. --Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim...
Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor,-- crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dous foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.
--Quem é? perguntou o marido. --Sou eu.
Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.
--Não é preciso... --Faça favor.
O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.
--Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.
Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança.
A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem.
Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte.
Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos . As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata.
Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.
Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo. --Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta.
--Mas...
Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona. --Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.
Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus.
--Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço! -- Siga! repetiu Cândido Neves. --Me solte! --Não quero demoras; siga!
Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes,--cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoutes.
--Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves.
Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.
--Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. -- É ela mesma. --Meu senhor! --Anda, entra...
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.
O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqüências do desastre.
Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.
--Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração. 

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Despedida do TREMA
Estou indo embora. Não há mais lugar para mim. Eu sou o trema. Você pode nunca ter reparado em mim, mas eu estava sempre ali, na Anhangüera, nos aqüíferos, nas lingüiças e seus trocadilhos por mais de quatrocentos e cinqüenta anos. 
Mas os tempos mudaram. Inventaram uma tal de reforma ortográfica e eu simplesmente tô fora. Fui expulso pra sempre do dicionário. Seus ingratos! Isso é uma delinqüência de lingüistas grandiloqüentes!... 
O resto dos pontos e o alfabeto não me deram o menor apoio... A letra U se disse aliviada porque vou finalmente sair de cima dela. O dois pontos disse que sou um preguiçoso que trabalha deitado enquanto ele fica em pé. 
Até o cedilha foi a favor da minha expulsão, aquele C cagão que fica se passando por S e nunca tem coragem de iniciar uma palavra. E também tem aquele obeso do O e o anoréxico do I. Desesperado, tentei chamar o ponto final pra trabalharmos juntos, fazendo um bico de reticências, mas ele negou, sempre encerrando logo todas as discussões. Será que se deixar um topete moicano posso me passar por aspas?... A verdade é que estou fora de moda. Quem está na moda são os estrangeiros, é o K e o W, "Kkk" pra cá, "www" pra lá. 
Até o jogo da velha, que ninguém nunca ligou, virou celebridade nesse tal de Twitter, que aliás, deveria se chamar TÜITER. Chega de argüição, mas estejam certos, seus moderninhos: haverá conseqüências! Chega de piadinhas dizendo que estou "tremendo de medo". Tudo bem, vou-me embora da língua portuguesa. Foi bom enquanto durou. Vou para o alemão, lá eles adoram os tremas. E um dia vocês sentirão saudades. E não vão agüentar!... 
Nós nos veremos nos livros antigos. Saio da língua para entrar na história.

sábado, 12 de novembro de 2011

Ufes divulga relação de candidatos por vaga do vestibular 2012

Segunda etapa acontece nos dias 18, 19 e 20 de dezembro. Curso mais concorrido é Medicina, com 69,1 por vaga.


A Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) divulgou na tarde desta sexta-feira (11) a relação candidato/vaga do Processo Seletivo 2012 da instituição. Segundo a Comissão Coordenadora do Vestibular, o curso mais concorrido continua sendo Medicina, com 69,1 candidatos por vaga. Em seguida vem Direito (23,7 por vaga), Engenharia Civil (22,7 por vaga), Arquitetura e Urbanismo (18,7 por vaga) e Psicologia (18,2 por vaga). Ao todo, 25.047 candidatos foram inscritos.
Pela reserva de vagas, os cursos mais concorridos são Medicina (12,4 por vaga), Engenharia Civil (7,1 por vaga), Arquitetura e Urbanismo (6,5 por vaga), Direito (6,1 por vaga) e Odontologia (5,3 por vaga).
A segunda etapa do vestibular acontece nos dias 18, 19 e 20 de dezembro de 2011. A nota da primeira etapa será feita com base nos resultados da prova do Enem 2011.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Devaneio e Embriaguez duma Rapariga

Pelo quarto parecia-lhe estarem a se cruzar os elétricos, a estremecerem-lhe a imagem refletida. Estava a se pentear vagarosamente diante da penteadeira de três espelhos, os braços brancos e fortes arrepiavam-se à frescurazita da tar­de. Os olhos não se abandonavam, os espelhos vibravam ora escuros, ora luminosos. Cá fora, duma janela mais alta, caiu à rua uma cousa pesada e fofa. Se os miúdos e o ma­rido estivessem à casa, já lhe viria à idéia que seria des­cuido deles. Os olhos não se despregavam da imagem, o pente trabalhava meditativo, o roupão aberto deixava apa­recerem nos espelhos os seios entrecortados de várias raparigas.
"A Noite!", gritou o jornaleiro ao vento brando da Rua do Riachuelo, e alguma cousa arrepiou-se pressagiada. Jogou o pente à penteadeira, cantou absorta: "quem viu o par­dal-zito... passou pela jane-la... voou pr'além do Mi-nho!" — mas, colérica, fechou-se dura como um leque.
Deitou-se, abanava-se impaciente com um jornal a farfalhar no quarto. Pegou o lenço, aspirava-o a comprimir o bordado áspero com os dedos avermelhados. Punha-se de novo a abanar-se, quase a sorrir. Ai, ai, suspirou a rir. Teve a visão de seu sorriso claro de rapariga ainda nova, e sorriu mais fechando os olhos, a abanar-se mais profundamente. Ai, ai, vinha da rua como uma borboleta.
"Bons dias, sabes quem veio a me procurar cá à casa?", pensou como assunto possível e interessante de palestra. "Pois não sei, quem?", perguntaram-lhe com um sorriso galanteador, uns olhos tristes numa dessas caras pálidas que a uma pessoa fazem tanto mal. "A Maria Quitéria, homem!", respondeu garrida, de mão à ilharga. "E se mo permite, quem é esta rapariga?", insistiram galante, mas já agora sem fisionomia. "Tu!", cortou ela com leve rancor a palestra, que chatura.
Ai que quarto suculento! ela se abanava no Brasil. O sol preso pelas persianas tremia na parede como uma gui­tarra. A Rua do Riachuelo sacudia-se ao peso arquejante dos elétricos que vinham da Rua Mem de Sá. Ela ouvia curiosa e entediada o estremecimento do guarda-loiça na sala das visitas. D'impaciência, virou-se-lhe o corpo de bru­ços, e enquanto estava a esticar com amor os dedos dos pés pequeninos, aguardava seu próximo pensamento com os olhos abertos. "Quem encontrou, buscou", disse-se em forma de rifão rimado, o que sempre terminava por parecer com alguma verdade. Até que adormeceu com a boca aberta, a baba a umedecer-lhe o travesseiro.
Só acordou com o marido a voltar do trabalho e a entrar pelo quarto adentro. Não quis jantar nem sair de seus cuidados, dormiu de novo: o homem lá que se regalasse com as sobras do almoço.
E, já que os filhos estavam na quinta das titias em Jacarepaguá, ela aproveitou para amanhecer esquisita: túrbida e leve na cama, um desses caprichos, sabe-se lá. O marido apareceu-lhe já trajado e ela nem sabia o que o homem fi­zera para o seu pequeno almoço, e nem olhou-lhe o fato, se estava ou não por escovar, pouco se lhe importava se hoje era dia dele tratar os negócios na cidade. Mas quando ele se inclinou para beijá-la, sua leveza crepitou como folha seca:
— Larga-te daí!
— E o que tens? pergunta-lhe o homem atônito, a ensaiar imediatamente carinho mais eficaz.
Obstinada, ela não saberia responder, estava tão rasa e princesa que não tinha sequer onde se lhe buscar uma res­posta. Zangou-se:
— Ai que não me maces! não me venhas a rondar como um galo velho!
Ele pareceu pensar melhor e declarou:
— Ó rapariga, estás doente.
Ela aceitou surpreendida, lisonjeada. Durante o dia inteiro ficou-se na cama, a ouvir a casa tão silenciosa sem o bulício dos miúdos, sem o homem que hoje comeria seus cozidos pela cidade. Durante o dia inteiro ficou-se à cama. Sua cólera era tênue, ardente. Só se levantava mesmo para ir à casa de banhos, donde voltava nobre, ofendida.
A manhã tornou-se uma longa tarde inflada que se tornou noite sem fundo amanhecendo inocente pela casa toda.
Ela ainda à cama, tranqüila, improvisada. Ela amava... Estava previamente a amar o homem que um dia ela ia amar. Quem sabe lá, isso às vezes acontecia, e sem culpas nem danos para nenhum dos dois. Na cama a pensar, a pensar, quase a rir como a uma bisbilhotice. A pensar, a pensar. O quê? ora, lá ela sabia. Assim deixou-se a ficar.
Dum momento para outro, com raiva, estava de pé. Mas nas fraquezas do primeiro instante parecia doida e deli­cada no quarto que rodava, que rodava até ela conseguir às apalpadelas deitar-se de novo à cama, surpreendida de que talvez fosse verdade: "ó mulher, vê lá se me vais mesmo adoecer!", disse desconfiada. Levou a mão à testa para ver se lhe tinham vindo febres.
Nessa noite, até dormir, fantasticou, fantasticou: por quantos minutos? até que tombou: adormecidona, a ressonar com o marido.
Acordou com o dia atrasado, as batatas por descascar, os miúdos que voltariam à tarde das titias, ai que até me faltei ao respeito!, dia de lavar roupa e cerzir as peúgas, ai que vagabunda que me saíste!, censurou-se curiosa e satis­feita, ir às compras, não esquecer o peixe, o dia atrasado, a manhã pressurosa de sol.
Mas no sábado à noite foram à tasca da Praça Tira-dentes a atenderem ao convite do negociante tão próspero, ela com vestidito novo que se não era cheio d'enfeites era de bom pano superior, desses que lhe iam a durar pela vida afora. No sábado à noite, embriagada na Praça Tiradentes, embriagada mas com o marido ao lado a garanti-la, e ela cerimoniosa diante do outro homem tão mais fino e rico, procurando dar-lhe palestras, pois que ela não era nenhu­ma parola d'aldeia e já vivera em Capital. Mas borrachona a mais não poder.
E se seu marido não estava borracho é que não queria faltar ao respeito ao negociante, e, cheio d'empenho e d'hu­mildade, deixava-lhe, ao outro, o cantar de galo. O que assentava bem para a ocasião fina, mas lhe punha, a ela, uma dessas vontades de rir! um desses desprezos! olhava o marido metido no fato novo e achava-lhe uma tal piada! Borrachona a mais não poder mas sem perder o brio de rapariga. E o vinho verde a esvaziar-se-lhe do copo.
E quando estava embriagada, como num ajantarado farto de domingo, tudo o que pela própria natureza é separado um do outro — cheiro d'azeite dum lado, homem doutro, terrina dum lado, criado de mesa doutro — unia-se esquisitamente pela própria natureza, e tudo não passava duma sem-vergonhice só, duma só marotagem.
E se lhe estavam brilhantes e duros os olhos, se seus gestos eram etapas difíceis até conseguir enfim atingir o paliteiro, em verdade por dentro estava-se até lá muito bem, era-se aquela nuvem plena a se transladar sem esforço. Os lábios engrossados e os dentes brancos, e o vinho a inchá-la. E aquela vaidade de estar embriagada a facilitar-lhe um tal desdenho por tudo, a torná-la madura e redonda como uma grande vaca.
Naturalmente que ela palestrava. Pois que lhe não fal­tavam os assuntos nem as capacidades. Mas as palavras que uma pessoa pronunciava quando estava embriagada era como se estivesse prenhe — palavras apenas na boca, que pouco tinham a ver com o centro secreto que era como uma gravidez. Ai que esquisita estava. No sábado à noite a alma diária perdida, e que bom perdê-la, e como lembrança dos outros dias apenas as mãos pequenas tão maltratadas — e ela agora com os cotovelos sobre a toalha de xadrez vermelho-e-branco da mesa como sobre uma mesa de jogo, profundamente lançada numa vida baixa e revolucionante. E esta gargalhada? essa gargalhada que lhe estava a sair mis­teriosamente duma garganta cheia e branca, em resposta à finura do negociante, gargalhada vinda da profundeza daquele sono, e da profundeza daquela segurança de quem tem um corpo. Sua carne alva estava doce como a de uma lagosta, as pernas duma lagosta viva a se mexer devagar no ar. E aquela vontade de se sentir mal para aprofundar a doçura em bem ruim. E aquela maldadezita de quem tem um corpo.Palestrava, e ouvia com curiosidade o que ela mesma estava a responder ao negociante abastado que, em tão boa hora, os convidara e pagava-lhes o pasto. Ouvia intrigada e deslumbrada o que ela mesma estava a responder: o que dissesse nesse estado valeria para o futuro em augúrio — já agora ela não era lagosta, era um duro signo: escorpião. Pois que nascera em novembro.
Um holofote enquanto se dorme que percorre a madru­gada — tal era a sua embriaguez errando lenta pelas alturas.
Ao mesmo tempo, que sensibilidade! mas que sensibi­lidade! quando olhava o quadro tão bem pintado do res­taurante ficava logo com sensibilidade artística. Ninguém lhe tiraria cá das idéias que nascera mesmo para outras cousas. Ela sempre fora pelas obras d'arte.
Mas que sensibilidade! agora não apenas por causa do quadro de uvas e peras e peixe morto brilhando nas es­camas. Sua sensibilidade incomodava sem ser dolorosa, como uma unha quebrada. E se quisesse podia permitir-se o luxo de se tornar ainda mais sensível, ainda podia ir mais adiante: porque era protegida por uma situação, pro­tegida como toda a gente que atingiu uma posição na vida. Como uma pessoa a quem lhe impedem de ter a sua des­graça. Ai que infeliz que sou, minha mãe. Se quisesse podia deitar ainda mais vinho no copo e, protegida pela posição que alcançara na vida, emborrachar-se ainda mais, con­tanto que não perdesse o brio. E assim, mais emborracha­da ainda, percorria os olhos pelo restaurante, e que despre­zo pelas pessoas secas do restaurante, nenhum homem que fosse homem a valer, que fosse triste mesmo. Que despre­zo pelas pessoas secas do restaurante, enquanto ela esta­va grossa e pesada, generosa a mais não poder. E tudo no restaurante tão distante um do outro como se jamais um pudesse falar com o outro. Cada um por si, e lá Deus por toda a gente.
Seus olhos de novo fitaram aquela rapariga que, já d'en­trada, lhe fizera subir a mostarda ao nariz. Logo d'entrada percebera-a sentada a uma mesa com seu homem, toda cheia dos chapéus e d'ornatos, loira como um escudo falso, toda santarrona e fina — que rico chapéu que tinha! — vai ver que nem casada era, e a ostentar aquele ar de santa. E com seu rico chapéu bem posto. Pois que bem lhe aproveitasse a beatice! e que se não lhe entornasse a fidalguia na sopa! As mais santazitas eram as que mais cheias estavam de patifa­ria. E o criado de mesa, o grande parvo, a servi-la cheio das atenções, o finório: e o homem amarelo que a acompanhava a fazer vistas grossas. E a santarrona toda vaidosa de seu chapéu, toda modesta de sua cinturita fina, vai ver que não era capaz de parir-lhe, ao seu homem, um filho. Ai que não tinha nada a ver com isso, a bem dizer: mas já d'entrada crescera-lhe a vontade d'ir e d'encher-lhe, à cara de santa loira da rapariga, uns bons sopapos, a fidalguita de chapéu. Que nem roliça era, era chata de peito. E vai ver que, com todos os seus chapéus, não passava duma vendeira d'horta­liça a se fazer passar por grande dama.
Oh, como estava humilhada por ter vindo à tasca sem chapéu, a cabeça agora parecia-lhe nua. E a outra com seus ares de senhora, a fingir de delicada. Bem sei o que te falta, fidalguita, e ao teu homem amarelo! E se pensas que t'invejo e ao teu peito chato, fica a saber que me ralo, que bem me ralo de teus chapéus. A patifas sem brio como tu, a se faze­rem de rogadas, eu lhas encho de sopapos.
Na sua sagrada cólera, estendeu com dificuldade a mão e tomou um palito.
Mas finalmente a dificuldade de chegar em casa desapareceu: remexia-se agora dentro da realidade familiar de seu quarto, agora sentada no bordo de sua cama com a chinela a se balançar no pé.
E, como entrefechara os olhos toldados, tudo ficou de carne, o pé da cama de carne, a janela de carne, na cadeira o fato de carne que o marido jogara, e tudo quase doía. E ela cada vez maior, vacilante, túmida, gigantesca. Se conse­guisse chegar mais perto de si mesma, ver-se-ia inda maior. Cada braço seu poderia ser percorrido por uma pessoa, na ignorância de que se tratava de um braço, e em cada olho podia-se-lhe mergulhar dentro e nadar sem saber que era um olho. E ao redor tudo a doer um pouco. As coisas feitas de carne com nevralgia. Fora o friozito que a tomara ao sair da casa de pasto.
Estava sentada à cama, conformada, cética.
E isso ainda não era nada, só Deus sabia: ela sabia muito bem que isso inda não era nada. Que nesse momento lhe estavam a acontecer cousas que só mais tarde iriam a doer mesmo e a valer: quando ela voltasse ao seu tamanho comum, o corpo anestesiado estaria a acordar latejando e ela iria a pagar pelas comilanças e vinhos.
Então, já que isso terminaria mesmo por acontecer, tanto se me faz abrir agora mesmo os olhos, o que fez, e tudo ficou menor e mais nítido, embora sem nenhuma dor. Tudo, no fundo, estava igual, só que menor e familiar. Esta­va sentada bem tesa na sua cama, o estômago tão cheio, absorta, resignada, com a delicadeza de quem espera sentado que outro acorde. "Empanturras-te e eu que pague o pato", disse-se melancólica, a olhar os deditos brancos do pé. Olha­va ao redor, paciente, obediente. Ai, palavras, palavras, obje­tos do quarto alinhados em ordem de palavras, a formarem aquelas frases turvas e maçantes que quem souber ler, lera.Aborrecimento, aborrecimento, ai que chatura. Que maça­da. Enfim, ai de mim, seja lá o que Deus bem quiser. Que é que se havia de fazer. Ai, é uma tal cousa que se me dá que nem bem sei dizer. Enfim, seja lá bem o que Deus quiser. E dizer que se divertira tanto esta noite! e dizer que fora tão bom, e a gosto seu o restaurante, ela sentada fina à mesa. Mesa! gritou-lhe o mundo. Mas ela nem sequer a responder-lhe, a alçar os ombros com um muxoxo amuado, importunada, que não me venhas a maçar com carinhos; desiludida, resignada, empanturrada, casada, contente, a vaga náusea.
Foi nesse instante que ficou surda: faltou-lhe um sen­tido. Enviou à orelha uma tapona de mão espalmada, o que só fez entornar mais o caldo: pois encheu-se-lhe o ouvi­do de um rumor de elevador, a vida de repente sonora e aumentada nos menores movimentos. Das duas, uma: estava surda ou a ouvir demais — reagiu a essa nova solicitação com uma sensação maliciosa e incômoda, com um suspiro de saciedade conformada. Pros raios que os partam, disse suave, aniquilada.
"E quando no restaurante...", lembrou-se de repente. Quando estivera no restaurante o protetor do marido en­costara ao seu pé um pé embaixo da mesa, e por cima da mesa a cara dele. Porque calhara ou de propósito? O mafar­rico. Uma pessoa, a falar verdade, que era lá bem interes­sante. Alçou os ombros.
E quando no seu decote redondo — em plena Praça Tiradentes!, pensou ela a abanar a cabeça incrédula — a mosca se lhe pousara na pele nua? Ai que malícia.
Havia certas cousas boas porque eram quase nausean­tes: o ruído como de elevador no sangue, enquanto o ho­mem roncava ao lado, os filhos gorditos empilhados no outro quarto a dormirem, os desgraçadinhos. Ai que cousa que se me dá! pensou desesperada. Teria comido demais? ai que cousa que se me dá, minha santa mãe!
Era a tristeza.
Os dedos do pé a brincarem com a chinela. O chão lá não muito limpo. Que relaxada e preguiçosa que me saíste. Amanhã não, porque não estaria lá muito bem das pernas. Mas depois de amanhã aquela sua casa havia de ver: dar-lhe-ia um esfregaço com água e sabão que se lhe arrancariam as sujidades todas! a casa havia de ver! ameaçou ela colérica. Ai que se sentia tão bem, tão áspera, como se ainda estivesse a ter leite nas mamas, tão forte. Quando o amigo do marido a viu tão bonita e gorda ficou logo com respeito por ela. E quando ela ficava a se envergonhar não sabia aonde havia de fitar os olhos. Ai que tristeza. Que é que se há de fazer. Sentada no bordo da cama, a pestanejar resignada. Que bem que se via a lua nessas noites de verão. Inclinou-se um pouquito, desinteressada, resignada. A lua. Que bem que se via. A lua alta e amarela a deslizar pelo céu, a coitadita. A deslizar, a deslizar... Alta, alta. A lua. Então a grosseria ex­plodiu-lhe em súbito amor: cadela, disse a rir.

O Crime do Professor de Matemática

Quando o homem atingiu a colina mais alto, os sinos tocavam na cidade embaixo. Viam-se apenas os tetos irregulares das casas. Perto dele estava a única árvore da chapada. O homem estava de pé com um saco pesado na mão.
Olhou para baixo com olhos míopes. Os católicos entravam devagar e miúdos na igreja, e ele procurava ouvir as vozes esparsas das crianças espalhadas na praça. Mas apesar da limpidez da manhã os sons mal alcançavam o planalto. Via também o rio que de cima parecia imóvel, e pensou: é domingo. Viu ao longe a montanha mais alta com as escarpas secas. Não fazia frio mas ele ajeitou o paletó agasalhando-se melhor. Afinal pousou com cuidado o saco no chão. Tirou os óculos talvez para respirar melhor porque, com os óculos na mão, respirou muito fundo. A claridade batia nas lentes que enviaram sinais agudos. Sem os óculos, seus olhos piscaram claros, quase jovens, infamiliares. Pôs de novo os óculos, tornou-se um senhor de meia-idade e pegou de novo no saco: pesava como se fosse de pedra, pensou. Forçou a vista para perceber a correnteza do rio, inclinou a cabeça para ouvir algum ruído: o rio estava parado e apenas o som mais duro de uma voz atingiu por um instante a altura - sim, ele estava bem só. O ar fresco era inóspito, ele que morara numa cidade mais quente. A única árvore da chapada balançava os ramos. Ele olhou-a. Ganhava tempo. Até que achou que não havia porque esperar mais.
E no entanto aguardava. Certamente os óculos o incomodavam porque de novo os tirou, respirou fundo e guardou-os no bolso.
Abriu então o saco, espiou um pouco. Depois meteu dentro a mão magra e foi puxando o cachorro morto. Todo ele se concentrava apenas na mão importante e ele mantinha os olhos profundamente fechados enquanto puxava. Quando os abriu, o ar estava ainda mais claro e os sinos alegre tocaram novamente chamando os fiéis para o consolo da punição.
O cachorro desconhecido estava à luz.
Então ele se pôs metodicamente a trabalhar. Pegou no cachorro duro e negro, depositou-o numa baixa do terreno. Mas, como se já tivesse feito muito, pôs os óculos, sentou-se ao lado do cão e começou a observar a paisagem.
Viu muito claramente, e com certa inutilidade, a chapada deserta. Mas observou com precisão que estando sentado já não enxergava a cidadezinha embaixo. Respirou de novo. Remexeu no saco e tirou a pá. E pensou no lugar que escolheria. Talvez embaixo da árvore. Surpreendeu-se refletindo que embaixo da árvore enterraria este cão. Mas se fosse o outro, o verdadeiro cão, enterrá-lo-ia na verdade onde ele próprio gostaria de ser sepultado se estivesse morto: no centro mesmo da chapada, a encarar de olhos vazios o sol. Então, já que o cão desconhecido substituía o "outro", quis que ele, para maior perfeição do ato, recebesse precisamente o que o outro receberia. Não havia nenhuma confusão na cabeça do homem. Ele se entendia a si próprio com frieza, sem nenhum fio solto.
Em breve, por excesso de escrúpulo, estava ocupado demais em procurar determinar rigorosamente o meio da chapada. Não era fácil porque a única árvore se erguia num lado e, tendo-se como falso centro, dividia assimetricamente o planalto. Diante da dificuldade o homem concedeu: "não era necessário enterrar no centro, eu também enterraria o outro, digamos, bem onde eu estivesse neste mesmo momento em pé". Porque se tratava de dar ao acontecimento a fatalidade do acaso, a marca de uma ocorrência exterior e evidente - no mesmo plano das crianças na praça e dos católicos entrando na igreja - tratava-se de tornar o faro ao máximo visível à superfície do mundo sob o céu. Tratava-se de expor um fato, e de não lhe permitir a forma íntima e inpune de um pensamento.
À idéia de enterrar o cão onde estivesse nesse mesmo momento em pé - o homem recuou com uma agilidade que seu corpo pequeno e singularmente pesado não permitia. Porque lhe pareceu que sob os pés se desenhara o esboço da cova do cão.
Então ele começou a cavar ali mesmo com pá rítmica. Às vezes se interrompia para tirar e de novo botar os óculos. Suava penosamente. Não cavou muito mas não porque quisesse poupar seu cansaço. Não cavou muito porque pensou lúcido: "se fosse para o verdadeiro cão, eu cavaria pouco, enterrá-lo-ia bem à tona". Ele achava que o cão à superfície da terra não perderia a sensibilidade.
Afinal largou a pá, pegou com delicadeza o cachorro desconhecido e pousou-o na cova.
Que cara estranha o cão tinha. Quando com um choque descobrira o cão morto numa esquina, a idéia de enterrá-lo tornara seu coração tão pesado e surpreendido, que ele nem sequer tivera olhos para aquele focinho duro e de baba seca. Era um cão estranho e objetivo.
O cão era um pouco mais alto que o buraco cavado e depois de coberto com terra seria uma excrescência apenas sensível do planalto. Era assim precisamente que ele queria. Cobriu o cão com terra e aplainou-a com as mãos, sentindo com atenção e prazer sua forma nas palmas como se o alisasse várias vezes. O cão agora era apenas uma aparência do terreno.
Então o homem se levantou, sacudiu a terra das mãos, e não olhou nenhuma vez mais a cova. Pensou com certo gosto: acho que fiz tudo. Deu um suspiro fundo, e um sorriso inocente de libertação. Sim, fizera tudo. Seu crime fora punido e ele estava livre.
E agora ele podia pensar livremente no verdadeiro cão. Pôs-se então imediatamente a pensar no verdadeiro cão, o que ele evitara até agora. O verdadeiro cão que agora mesmo devia vagar perplexo pelas ruas do outro município, farejando aquela cidade onde ele não tinha mais dono.
Pôs-se então a pensar com dificuldade no verdadeiro cão como se tentasse pensar com dificuldade na sua verdadeira vida. O fato do cachorro estar distante na outra cidade dificultava a tarefa, embora a saudade o aproximasse da lembrança.
"Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazias à tua", pensou então com auxílio da saudade. "Dei-te o nome de José para te dar um nome que te servisse ao mesmo tempo de alma. E tu - como saber jamais que nome me deste? Quanto me amaste mais do que te amei", refletiu curioso.
"Nós nos compreendíamos demais, tu com o nome humano que te dei, eu com o nome que me deste e que nunca pronunciaste senão com o olhar insistente", pensou o homem sorrindo com carinho, livre agora de se lembrar à vontade.
"Lembro-me de ti quando eras pequeno", pensou divertido, "tão pequeno, bonitinho e fraco, abanando o rabo, me olhando, e eu surpreendendo em ti uma nova forma de ter minha alma. Mas desde então, já começavas a ser todos os dias um cachorro que se podia abandonar. Enquanto isso, nossas brincadeiras tornavam-se perigosas de tanta compreensão", lembrou-se o homem satisfeito, "tu terminava me mordendo e rosnando, eu terminava jogando um livro sobre ti e rindo. Mas quem sabe o que já significava aquele meu riso sem vontade. Eras todos os dias um cão que se podia abandonar."
"E como cheiravas as ruas!", pensou o homem rindo um pouco, "na verdade não deixaste pedra por cheirar... Este era o teu lado infantil. Ou era o teu verdadeiro cumprimento de ser cão? e o resto apenas brincadeira de ser meu? Porque eras irredutível. E, abanando tranqüilo o rabo, parecias rejeitar em silêncio o nome que eu te dera. Ah, sim, eras irredutível: eu não queria que comesses carne para que não ficasses feroz, mas pulaste um dia sobre a mesa e, com uma ferocidade que não vem do que se come, me olhaste mudo e irredutível com a carne na boca. Porque, embora meu, nunca me cedeste nem um pouco de teu passado e de tua natureza. E, inquieto, eu começava a compreender que não exigias de mim que eu cedesse nada da minha para te amar, e isso começava a me importunar. Era no ponto de realidade resistente das duas naturezas que esperavas que nos entendêssemos: Minha ferocidade e a tua não deveriam se trocar por doçura: era isso o que pouco a pouco me ensinavas, e era isto também que estava se tornando pesado. Não me pedindo nada, me pedias demais. De ti mesmo, exigias que fosses um cão. De mim, exigias que eu fosse um homem. E eu, eu disfarçava como podia. Às vezes, sentado sobre as patas diante de mim, como me espiavas! Eu então olhava o teto, tossia, dissimulava, olhava as unhas. Mas nada te comovia: tu me espiavas. A quem irias contar? Finge - dizia-me eu -, finge depressa que és outro, dá a falsa entrevista, faz-lhe um afago, joga-lhe um osso - mas nada te distraía: tu me espiavas. Tolo que eu era. Eu fremia de horror, quando eras tu o inocente: que eu me virasse e de repente te mostrasse meu rosto verdadeiro, e eriçado, atingido, erguer-te-ias até a porta ferido para sempre. Oh, eras todos os dias um cão que se podia abandonar. Podia-se escolher. Mas tu, confiante, abanavas o rabo."
"Às vezes, tocado pela tua acuidade, eu conseguia ver em ti a tua própria angústia. Não a angústia de ser cão que era a tua única forma possível. Mas a angústia de existir de um modo tão perfeito que se tornava uma alegria insuportável: davas então um pulo e vinhas lamber meu rosto com amor inteiramente dado e certo perigo de ódio como se fosse eu quem, pela amizade, te houvesse revelado. Agora estou bem certo de que não fui eu quem teve um cão. Foste tu que tiveste uma pessoa."
"Mas possuíste uma pessoa tão poderosa que podia escolher: e então te abandonou. Com alívio abandonou-te. Com alívio sim, pois exigias - com a incompreensão serena e simples de quem é um cão heróico - que eu fosse um homem. Abandonou-te com uma desculpa que todos em casa aprovaram: porque como poderia eu fazer uma viagem de mudança com bagagem e família, e ainda mais um cão, com a adaptação ao novo colégio e à nova cidade, e ainda mais um cão? 'Que não cabe em parte alguma', disse Marta prática. 'Que incomodará os passageiros', explicou minha sogra sem saber que previamente me justificava, e as crianças choraram, e eu não olhava nem para elas nem para ti, José. Mas só tu e eu sabemos que te abandonei porque eras a possibilidade constante de eu pecar o que, no disfarçado de meus olhos, já era pecado. Então pequei logo para ser logo culpado. E este crime subtitui o crime maior que eu não teria coragem de cometer", pensou o homem cada vez mais lúcido.
"Há tantas formas de ser culpado e de perder-se para sempre e de se trair e de não se enfrentar. Eu escolhi a de ferir um cão", pensou o homem. "Porque eu sabia que esse seria um crime menor e que ninguém vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem. Porque eu sabia que esse crime não era punível."
Sentado na chapada, sua cabeça matemática estava fria e inteligente. Só agora ele parecia compreender, em toda sua gélida plenitude, que fizera com o cão algo realmente impune e para sempre. Pois ainda não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições.
Um homem ainda conseguia ser mais esperto que o Juízo Final. Este crime ninguém lhe condenava. Nem a Igreja. "Todos são meu cúmplices, José." Eu teria que bater de porta e porta e mendigar que me acusassem e me punissem: todos me bateriam a porta com uma cara de repente endurecida. Este crime ninguém me condena. Nem tu, José, me condenarias. Pois bastaria, esta pessoa poderosa que sou, escolher de te chamar - e, do teu abandono nas ruas, num pulo me lamberias a face com alegria e perdão. Eu te daria a outra face a beijar."
O homem tirou os óculos, respirou, botou-os de novo.
Olhou a cova coberta. Onde ele enterrara um cão desconhecido em tributo ao cão abandonado, procurando enfim pagar a dívida que inquietantemente ninguém lhe cobrava. Procurando punir-se com um ato de bondade e ficar livre de seu crime. Como alguém dá uma esmola para enfim poder comer o bolo por causa do qual o outro não comeu o pão.
Mas como se José, o cão abandonado, exigisse dele muito mais que a mentira: como se exigisse que ele, num último arranco, fosse um homem - e como homem assumisse o seu crime - ele olhava a cova onde enterrara a sua fraqueza e a sua condição.
E agora, mais matemático ainda, procurava um meio de não se ter punido. Ele não devia ser consolado. Procurava friamente um modo de destruir o falso enterro do cão desconhecido. Abaixou-se então, e, solene, calmo, com movimentos simples - desenterrou o cão. O cão escuro apareceu afinal inteiro, infamiliar com a terra nos cílios, os olhos abertos e cristalizados. E assim o professor de matemática renovara o seu crime para sempre. O homem então olhou para os lados e para o céu pedindo testemunha para o que fizera. E como se não bastasse ainda, começou a descer as escarpas em direção ao seio de sua família.

Começos de Uma Fortuna

Era uma daquelas manhãs que parecem suspensas no ar. E que mais se assemelhavam à idéia que fazemos do tempo.A varanda estava aberta mas a frescura se congelara fora e nada entrava do jardim, como se qualquer transbordamento fosse uma quebra de harmonia. Só algumas moscas brilhantes haviam penetrado na sala de jantar e sobrevoavam o açucareiro. A essa hora, Tijuca não havia despertado de todo. "Se eu tivesse dinheiro..." pensava Artur, e um desejo de entesourar, de possuir com tranqüilidade, dava a seu rosto um ar desprendido e contemplativo.
— Não sou um jogador.
— Deixe de tolices, respondeu a mãe. Não recomece com histórias de dinheiro.Na realidade ele não tinha vontade de iniciar nenhuma conversa premente que terminasse em soluções. Um pouco da mortificação do jantar da véspera sobre mesadas, com o pai misturando autoridade e compreensão e a mãe misturando compreensão e princípios básicos — um pouco da mortificação da véspera pedia, no entanto, prosseguimento. Só que era inútil procurar em si a urgência de ontem. Cada noite o sono parecia responder a todas as suas necessidades. E de manhã, ao contrário dos adultos que acordam escuros e barbados, ele despertava cada vez mais imberbe. Despenteado, mas diferente da desordem do pai, a quem parecia terem acontecido coisas durante a noite.Também sua mãe saía do quarto um pouco desfeita e ainda sonhadora, como se a amargura do sono tivesse lhe dado satisfação. Até tomarem café todos estavam irritados ou pensativos, inclusive a empregada. Não era esse o momento de pedir coisas. Mas para ele era uma necessidade pacífica a de estabelecer domínios de manhã: cada vez que acordava era como se precisasse recuperar os dias anteriores. Tanto o sono cortava suas amarras, todas as noites.
— Não sou um jogador nem um gastador.
— Artur, disse a mãe irritadíssima, já me bastam as minhas preocupações!
— Que preocupações? perguntou ele com interesse. A mãe olhou-o seca como a um estranho. No entanto ele era muito mais parente que seu pai, que, por assim dizer, entrara na família. Apertou os lábios.
— Todo o mundo tem preocupações, meu filho, corrigiu-se ela entrando então em nova modalidade de relações, entre maternal e educadora.E daí em diante sua mãe assumira o dia. Dissipara-se a espécie de individualidade com que acordava e Artur já podia contar com ela. Desde sempre, ou aceitavam-no ou reduziam-no a ser ele mesmo. Em pequeno brincavam com ele, jogavam-no para o ar, enchiam-no de beijos - e de repente ficavam "individuais"
— largavam-no, diziam gentilmente mas já intangíveis: "agora acabou", e ele ficava todo vibrante de carícias, com tantas gargalhadas ainda por dar. Tornava-se implicante, mexia num e noutro pé, cheio de uma cólera que, no entanto, se transformaria no mesmo instante em delícia, em pura delícia, se eles apenas quisessem.
— Coma, Artur, concluiu a mãe e de novo ele já podia contar com ela. Assim imediatamente tornou-se menor e muito mais malcriado:
— Eu também tenho as minhas preocupações mas ninguém liga. Quando digo que preciso de dinheiro parece que estou pedindo para jogar ou para beber.
— Desde quando é que o senhor admite que podia ser para jogar ou para beber? disse o pai entrando na sala e encaminhando-se para a cabeceira da mesa. Ora essa! que pretensão!Ele não contara com a chegada do pai. Desnorteado, porém habituado, começou:
— Mas papai! sua voz desafinou numa revolta que não chegava a ser indignada. Como contrapeso, a mãe já estava dominada, mexendo tranqüilamente o café com leite, indiferente à conversa que parecia não passar de mais algumas moscas. Afastava-as do açucareiro com mão mole.
— Vá saindo que está na sua hora, cortou o pai. Artur virou-se para sua mãe. Mas esta passava manteiga no pão, absorta e prazerosa. Fugira de novo. A tudo diria sim, sem dar nenhuma importância.Fechando a porta, ele de novo tinha a impressão de que a cada momento entregavam-no à vida. Assim é que a rua parecia recebê-lo. "Quando eu tiver minha mulher e meus filhos tocarei a campainha daqui e farei visitas e tudo será diferente", pensou.A vida fora de casa era completamente outra. Além da diferença de luz — como se somente saindo ele visse que tempo realmente fazia e que disposições haviam tomado as circunstâncias durante a noite — além da diferença de luz, havia a diferença do modo de ser. Quando era pequeno, a mãe dizia: "fora de casa ele é uma doçura, em casa um demônio". Mesmo agora, atravessando o pequeno portão, ele se tornara visivelmente mais moço e ao mesmo tempo menos criança, mais sensível e sobretudo sem assunto. Mas com um interesse dócil. Não era uma pessoa que procurasse conversas, mas se alguém lhe perguntava como agora: "menino, de que lado fica a igreja?", ele se animava com suavidade, inclinava o longo pescoço, pois todos eram mais baixos que ele; e informava atraído, como se nisso houvesse uma troca de cordialidades e um campo aberto à curiosidade. Ficou atento olhando a senhora dobrar a esquina em caminho da igreja, pacientemente responsável pelo seu itinerário.
— Mas dinheiro é feito para gastar e você sabe com quê, disse-lhe Carlinhos intenso.
— Quero para comprar coisas, respondeu um pouco vago.
— Uma bicicletinha? riu Carlinhos ofensivo, corado na intriga. Artur riu desagradado, sem prazer. Sentado na carteira, esperou que o professor se erguesse. O pigarro deste, prefaciando o começo da aula, foi o sinal habitual para os alunos se sentarem mais para trás, abrirem os olhos com atenção e não pensarem em nada. "Em nada", foi a resposta perturbada de Artur ao professor que o interpelava irritado. "Em nada" era vagamente em conversas anteriores, em decisões pouco definitivas sobre um cinema à tarde, em — em dinheiro. Ele precisava de dinheiro. Mas durante a aula, obrigado a estar imóvel e sem nenhuma responsabilidade, qualquer desejo tinha como base o repouso.
— Você então não viu logo que Glorinha estava querendo ser convidada pro cinema? disse Carlinhos, e ambos olharam com curiosidade a menina que se afastava segurando a pasta. Pensativo, Artur continuou a andar ao lado do amigo,olhando as pedras do chão.
— Se você não em dinheiro para duas entradas, eu empresto, você paga depois.Pelo visto, do momento em que tivesse dinheiro seria obrigado a empregá-lo em mil coisas.
— Mas depois eu tenho que devolver a você e já estou devendo ao irmão de Antônio, respondeu evasivo.
— E então? que é que tem! explicou o outro, prático e veemente."E então", pensou com uma pequena cólera, "e então, pelo visto, logo que alguém tem dinheiro aparecem os outros querendo aplicá-lo, explicando como se perde dinheiro."
— Pelo visto, disse desviando do amigo a raiva, pelo visto basta você ter uns cruzeirinhos que mulher logo fareja e cai em cima.Os dois riram. Depois disso ele ficou mais alegre, mais confiante. Sobretudo menos oprimido pelas circunstâncias. Mas depois já era meio-dia e qualquer desejo se tornava mais árido e mais duro de suportar. Durante todo o almoço ele pensou com rispidez em fazer ou não fazer dívidas e sentia-se um homem aniquilado.
— Ou ele estuda demais ou não come bastante de manhã, disse a mãe. O fato é que acorda bem disposto mas aparece para o almoço com essa cara pálida. Fica logo com as feições duras, é o primeiro sinal.
— Não é nada, é o desgaste natural do dia, disse o pai bem humorado.Olhando-se no espelho do corredor antes de sair, realmente era a cara de um desses rapazes que trabalham, cansados e moços. Sorriu sem mexer os lábios, satisfeito no fundo dos olhos. Mas à porta do cinema não pôde deixar de pedir emprestado a Carlinhos, porque lá estava Glorinha com uma amiga.
— Vocês preferem sentar na frente ou no meio? perguntava Glorinha.Diante disso, Carlinhos pagou a entrada da amiga e Artur recebeu disfarçado o dinheiro da entrada de Glorinha.
— Pelo visto, o cinema está estragado, disse de passagem para Carlinhos. Arrependeu-se logo depois de ter falado, pois o colega mal ouvira, ocupado com a menina. Não era necessário diminuir-se aos olhos do outro, para quem uma sessão de cinema só tinha a ganhar com uma garota. Na realidade o cinema só esteve estragado no começo. Logo depois ele relaxou o corpo, esqueceu-se da presença ao lado e passou a ver o filme. Somente perto do meio teve consciência de Glorinha e num sobressalto olhou-a disfarçado. Com um pouco de surpresa constatou que ela não era propriamente a exploradora que ele supusera: lá estava Glorinha inclinada para frente, a boca aberta pela atenção. Aliviado, recostou-se de novo na poltrona.Mais tarde, porém, indagou-se se tinha ou não sido explorado. E sua angústia foi tão intensa que ele parou diante da vitrina com uma cara de horror. O coração batia como um punho. Além do rosto espantado, solto no vidro da vitrina, havia panelas e utensílios de cozinha que ele olhou com certa familiaridade. "Pelo visto, fui", concluiu e não conseguia sobrepor sua cólera ao perfil sem culpa de Glorinha. Aos poucos a própria inocência da menina tornou-se a sua culpa maior: "então ela explorava, explorava, e depois ficava toda satisfeita vendo o filme?". Seus olhos se encheram de lágrimas. "Ingrata", pensou ele escolhendo mal uma palavra de acusação. Como a palavra era um símbolo de queixa mais do que de raiva, ele se confundiu um pouco e sua raiva acalmou-se. Parecia-lhe agora, de fora para dentro e sem nenhuma vontade, que ela deveria ter pago daquele modo a entrada do cinema.Mas diante dos livros e cadernos fechados, seu rosto desanuviava-se. Deixou de ouvir as portas que batiam, o piano da vizinha, a voz da mãe no telefone. Havia um grande silêncio no seu quarto, como num cofre. E o fim da tarde parecia com uma manhã. Estava longe, longe, como um gigante que pudesse estar fora mantendo no aposento apenas os dedos absortos que viravam e reviravam um lápis. Havia instantes em que respirava pesado como um velho. A maior parte do tempo, porém, seu rosto mal aflorava o ar do quarto.
— Já estudei! gritou para a mãe que interpelava sobre o barulho da água. Lavando cuidadosamente os pés na banheira, ele pensou que a amiga de Glorinha era melhor que Glorinha. Nem tinha procurado reparar se Carlinhos "aproveitara" ou não da outra. A essa idéia, saiu muito depressa da banheira e parou diante do espelho da pia. Até que o ladrilho esfriou seus pés molhados.Não! não queria explicar-se com Carlinhos e ninguém lhe diria como usar o dinheiro que teria, e Carlinhos podia pensar que era com bicicletas, mas se fosse o que é que tem? e se nunca, mas nunca, quisesse gastar o seu dinheiro? e cada vez ficasse mais rico?... que é que há, está querendo briga? você pensa que...
— ... pode ser que você esteja muito ocupado com os seus pensamentos, disse a mãe interrompendo-o, mas ao menos coma o seu jantar e de vez em quando diga uma palavra. Então ele, em súbita volta à casa paterna:
— Ora a senhora diz que na mesa não se fala, ora quer que eu fale, ora diz que não se fala de boca cheia, ora...
— Olhe o modo como você fala com sua mãe, disse o pai sem severidade.
— Papai, chamou Artur docilmente, com as sobrancelhas franzidas, papai, como é promissórias?
— Pelo visto, disse o pai com prazer —, pelo visto o ginásio não serve para nada.
— Coma mais batata, Artur, tentou a mãe inutilmente arrastar os dois homens para si.
— Promissórias, dizia o pai afastando o prato, é assim: digamos que você tenha uma dívida.